Brincadeiras Infantis (Quase) Mortais

 

Já me perguntava “o que diabos vou escrever no próximo texto” quando tive uma inspiração que não pôde ser ignorada.

Eu estava em casa, jogando “Onimusha 4 – Dawn of Dreams″, quando meu irmão mais novo, de  13 anos, entra no quarto e percebo que o moleque estava com manchas roxas na parte de trás do pescoço. Suspeitei de que o pequeno garoto era espancado diariamente pelos colegas por ser fã incondicional de High School Musical, entretanto, para sanar a minha angústia intelectual, perguntei a ele como havia ganhado aqueles pequenos hematomas do tamanho de bolas de beisebol:

- Ô, moleque, que porra foi essa?
- Ah, nada não. Foi na escola.
- Na escola? Você estava jogando paintball com bolas de aço lá?
- Não. Eu tava jogando “ripa”.

Nesse momento algumas das minhas lembranças da época de escola vieram à tona e comecei a relembrar das brincadeiras infantis que praticava. Brincadeiras que se continuassem existindo na maioria das escolas de hoje, pois duvido que existam, nos levariam a ver pelas ruas um número excessivo de menores de idade semi-aleijados. Falo das traquinagens de moleque que envolviam chutes, socos, voadoras, enfim, toda uma variedade de agressões físicas e violência gratuita entre amigos durante o recreio.

Inspirado pelo pequeno fã do musical afeminado, compartilharei com vocês as brincadeiras que eu participava quando garoto e que, até hoje, tento reunir provas de que eram atividades similares às praticadas no treinamento dos soldados do Exército Israelense.

 

RIPA

Não tenho ideia de como esse esporte medieval chegou ao conhecimento da minha turma do colégio, mas lembro exatamente como era.

Tudo se iniciava quando, depois que um amiguinho havia acabado de comer algum lanche da cantina (gentilmente apelidados de “Jesus Me Chama”), amassava-se sua latinha de refrigerante, já vazia, até adquirir o formato de algo parecido com uma “bola” e gritava:

– Ééééé… RIPAAAAAA!

E esse era o aviso que iria começar uma das brincadeiras mais sangrentas que garotos sem medo de traumatismos cranianos gostavam de praticar.
A premissa da brincadeira era bastante simples: definiam-se uns poucos lugares do pátio ou da quadra para servirem de “locais de salvamento” (como as traves da quadra, bancos, etc). Chegando nesses lugares você estava salvo. Mas salvo de quê? Já conto. Definidos tais lugares, qualquer objeto que pudesse ser chutado era escolhido para servir de bola (qualquer coisa mesmo: uma latinha de refrigerante amassada, ou uma tampinha de garrafa, ou até uma lancheira de algum garoto distraído). Tendo então a “bola” , locais para se salvar e uma manada de moleques sem medo da morte, o jogo consistia em chutar a bola com toda a violência que suas pernas franzinas poderiam exercer e esperar que essa bolinha atingisse efetivamente o alvo. Tirando as pernas, se a bola topasse na região do tronco, cabeça, olho, mamilo, genitálias, de qualquer moleque, todos os outros tinham o direito de descer a mão no garoto-alvo até que ele tocasse num dos locais de salvamento. E era isso.

Quando alguém se tornava o alvo, a cena vista na quadra era a de dezenas de moleques correndo atrás de apenas um infeliz — que recebia socos nas costas ao mesmo tempo que lutava pela vida. Quando o alvo tocava no local de salvamento e desse modo deixava de ser um saco de pancadas móvel, as atenções voltavam-se novamente para a latinha amassada e outra bateria de chutes, misturados com golpes de Krav Maga, se iniciava.

Quem via de fora podia até achar que era um esporte coletivo (geralmente as professoras achavam), já que são vários moleques participando juntos. Só que esse, meus amigos, é um dos jogos mais individuais que podem existir. Mais individual que as atividades marotas que você pratica no banheiro. Na RIPA era cada um por si. Você chutava a bolinha, não para acertar alguém, mas para afastar aquela merda e, assim, não ser o próximo alvo.

Um caso a parte era quando meia dúzia de garotos combinavam de chutar a bola em direção a algum moleque detestado pelo grupo, e então esse pivete apanhava como nunca.

Certa vez vi um garoto que recebeu tantas cotoveladas nas costas, que, se o local de salvamento fosse uma ponte que tivesse uma placa dizendo “Jogue-se daqui, quebre as pernas, perfure um pulmão e deixe de ser o alvo”, não duvido que ele se jogaria - duas vezes, se fosse preciso.

Crianças sabem como serem cruéis.

 

CAMBURÃO

Diferente da Ripa, que acredito ser uma brincadeira cultivada em vários cantos do país, CAMBURÃO é um jogo que não sei se era tão conhecido assim — se eu estiver errado, me corrijam.

Essa brincadeira chegava a ser mais filha da puta que a anterior. O nível de violência infantil era menor, pois geralmente menos crianças participavam, mas quando era aplicada, era extremamente, digamos, inesquecível.

Jogava-se assim:
A pivetada se reunia, geralmente o grupo de amigos mais próximos, e combinava de iniciar essa brincadeira. As regras eram que se em algum momento da manhã, ou horário enquanto o indivíduo estivesse no colégio, fosse falado por ele algum palavrão em particular (pense nos seus palavrões preferidos), essa pessoa receberia cascudos e afins até dizer a senha que encerraria as porradas alheias, que era, justamente, Camburão.
Só que essa era uma brincadeira que se jogava em modo de hibernação. Logo nos primeiros dias que era combinado de praticá-la, todos os pivetes sabiam exatamente o que fazer para não se foderem, então ninguém xingava nada. Como a brincadeira continuava no dias seguintes, ad infinitum, você deveria deixar embutido no cérebro que NUNCA deveria usar aqueles palavrões escolhidos. Só que isso não acontecia, pois geralmente alguém se esquecia. A brincadeira rolava por meses, pois a chance de alguém esquecer que se falasse certos palavrões levaria socos desenfreados era maior.

Se você não entendeu, vamos a um exemplo prático:

“Cinco moleques estão sentados no banquinho que fica em frente à turma que tem as meninas mais gostosas da escola e todos são participantes ativos do Camburão. Até que sai da sala a Dani Peitos, uma menina que tinha dotes que se eu realmente precisar explicar quais eram, você está com problemas, meu amigo. Nisso um moleque, esquecido da brincadeira iniciada há tempos, solta um:

Caralho, mano, como eu queria ter uma visão raio-X agora”.

Nessa hora, o senso de foder o vacilão era ligado coletivamente pelo grupo e mal sabia o garoto esquecido que ele precisaria urgentemente era de um pronto-socorro. Não demorava mais que 2 segundos e a molecada se entreolhava dando um START automático na seção de murros no infeliz xingador.
O problema — nesse caso — é que o fulano realmente havia esquecido de que a brincadeira rolava eternamente e, para ele, aqueles murros dados com soco inglês, marteladas nos joelhos e barras de ferro no meio das costelas, eram dados sem razão alguma.
Depois de meia hora apanhando, a ponto de regurgitar pelo nariz o cereal ingerido ainda em casa, o pobre infeliz soltava um:
“Ei, lem-brei… Ca-cam… bu...rãããão!”.

Isto é, se ainda tivesse dentes.

 

CORREDORZINHO

Essa é old school.

Corredorzinho, como o próprio nome quase explica, era uma atividade em que, como sempre, um moleque se fodia enquanto outros 40 se divertiam.
Duas filas eram formadas paralelamente — formando assim um “corredor” — e o moleque infeliz, pré-selecionado, tinha que passar por esse corredor ao mesmo tempo em que recebia socos, chutes e cintadas nas nádegas dos outros garotos.

A escolha pelo garoto que passaria pelo corredor mais temido do que aqueles dos tempos de Carandirú, era mais ou menos assim:

Como o Camburão, a molecada combinava quem ia participar do Corredorzinho. Quem escolhesse participar, tinha que ter em mente que, se por acaso, fosse se sentar numa cadeira, num banco, no chão, no diabo que fosse, na presença dos outros integrantes da brincadeira, teria que pedir licença.
Caso a pessoa esquecesse desse hábito de educação social, seria punida, tendo que passar pelo corredor. Mas essa porra não é tão cruel (é o que você acha).

Havia outra opção, caso você estivesse a esse ponto de se foder fisicamente. Em vez de passar pelo corredor, o indivíduo poderia escolher uma alternativa de punição também combinada previamente pelos participantes: dar 3 beijos (no rosto mesmo) de uma das meninas da escola escolhida pelos outros integrantes da brincadeira. Sendo assim, o moleque ou tinha que passar pela surra de uma linha reta, ou topar os lábios molhadamente nas maçãs do rosto da Priscila Tonelada — ou Joana Três-Barrigas. Quem o pessoal escolhesse, o moleque tinha que beijar para fugir da surra.

Como nessa época todo garoto é absolutamente maluco, a grande maioria, eu digo uns 98%, preferiam passar pelo corredor.

Dependendo do nível de agradabilidade do garoto a ser punido, os garotos postos a darem porrada se multiplicavam. Um moleque odiado pela sala recebia socos ocos nas costas de praticamente toda a sala, mesmo quem não participava da brincadeira entrava no corredor só para poder tirar uma casquinha (ou um dente, se ainda tivesse sobrado algum).

Mas beijar a Priscila Tonelada? Jamais.

 

CUECÃO

Cuecão, Alargador de Ceroula, Chazão, O Máskara, Cuecão Atômico, Calcinhão. Talvez a brincadeira maldita mais famosa e divulgada do mundo. Cuecão é algo que em cada 10 moleques, pelo menos 8, de qualquer escola da vida, já teve o azar de receber.

A vítima desafortunada escolhida tem praticamente o corpo suspenso do chão ao ser levantado apenas pela cueca, agora transformada em fio dental, pelos seus colegas. Some o fato de você ter perdido toda sua capacidade de procriação e ter sua cueca favorita levada quase a cabeça à humilhação de ter passado por isso em frente à menina que tinha uma paixão platônica  — que nunca mais te olhará sem lembrar daquela freada de bicicleta — é uma das perversões juvenis mais humilhantes.

Geralmente eram dados quando a pessoa fazia aniversário; e aí tinha maluco que para evitar o infortúnio se escondia no banheiro, saia antes da última aula terminar, jurava que tinha borrado as calças minutos antes, e alguns até que iam sem cueca para não terem as nádegas expostas ao público.

E podem ter certeza, se ainda não foi contemplado com um, não se preocupe, pois o ditado é plausível:

“O que é seu está guardado”.

 

 

S. Paulo, 22, de uma manhã de sexta-feira ensolarada (até demais) de Abril de 2011.

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